O que podemos aprender com os marmiteiros indianos?
Estou prestes a lhe apresentar um modelo de logística tão perfeito que comete um erro a cada 16 milhões transações, considerado de qualidade padrão six sigma e com certificado ISO 90003. Eu poderia estar falando de gigantes como General Eletrics ou Motorola, mas estou me referindo aos marmiteiros indianos, os Dabbawalas, que não usam recurso tecnológico algum em toda sua cadeia e têm seu modelo (considerado perfeito) estudado pelo mundo todo. Incrível, não? Eu te conto essa história:
Nelson Rodrigues dizia que “a melhor forma de aprender é através das sensações, e não das ideias”, eu concordo com ele, por isso, para realmente entendermos o motivo de todo o sucesso dos Dabbawalas, te convido a atravessar dois oceanos e sentir comigo.
Mumbai, Índia. Cidade mais populosa do segundo país mais populoso do mundo, conhecida por seu trânsito que beira ao caos; onde carros, pedestres, vacas, porcos, cachorros, cabras, carrinhos de mão, carroças e lixo disputam ferozmente um espaço nas muitas vias das largas ruas cercadas por enormes arranha-céus que impedem de circular o vento. Quase não há calçadas. As temperaturas podem superar os 30 graus e o calor não colabora para a dissipação da mistura de cheiros fortes que emanam os muitos esgotos a céu aberto e as panelas, que, geralmente fervem temperos típicos, como gengibre, canela e curry. O fluxo de pessoas/ animais/ veículos é intenso e permanente, por esse motivo a buzina é banalmente usada incessantemente pelos carros como instrumento de sinalização. Você trabalha em um escritório que fica do lado oposto da cidade se comparado à sua casa (lá os bairros residenciais são afastados dos comerciais), tem por volta de 30 minutos na hora do almoço para fazer uma refeição nos poucos lugares que servem comida em meio a esse contexto caótico. É sabido por todos que a higiene e qualidade do alimento nesses lugares são de origem duvidosa. Além disso, você não come qualquer comida, sua dieta segue sua linha religiosa (há algumas por lá). Não parece uma missão nada amigável para se repetir todos os dias.
Em meio a esse cenário, cerca de 125 anos atrás, um banqueiro da comunidade de Parsi queria ter comida caseira preparada por suas esposa para comer no escritório, mas carrega-la dentro dos insanamente lotados trens da cidade não era uma opção, então ele deu a missão ao primeiro Dabbawala de buscar sua marmita na casa dele, levar até o escritório e depois levar o pote, ou dabba, de volta à sua casa. Eis que nasce uma centenária tradição e o tão famoso modelo de negócios de que se trata este artigo.
Dabbawalas carregando as dabbas pelas ruas de Mumbai. Fonte: http://www.freepressjournal.in
Hoje, aproximadamente 5 mil Dabbawalas formam uma cooperativa e percorrem um trajeto de mais ou menos 70 km, trajados em suas roupas e chapéus brancos, para entregar diariamente 200 mil refeições caseiras a trabalhadores indianos. O dia de um entregador começa quando ele busca cerca de 40 marmitas na casa de seus clientes e em sua bicicleta ou carrinho de mão as leva para a estação de trem indicada. Lá, outro grupo faz o carregamento dos potes nos trens depois os entregam aos trabalhadores em seus respectivos locais de trabalho. Aproximadamente uma hora depois, os Dabbawalas iniciam a logística reversa com um grupo que busca as dabbas nos mesmos escritórios e faz todo o caminho de volta. As marmitas podem passar por até quatro mãos, mas em 99,99% dos casos não há erros na entrega, que são realizadas 98% das vezes no horário exato combinado (apesar da situação do trânsito que descrevi e das frequentes e devastadoras chuvas que assolam a cidade de tempos em tempos). Os números são de impressionar. Mais impressionante ainda é, como já comentei acima, que eles não usam nenhum tipo de tecnologia durante toda a cadeia de serviço. A grande maioria dos entregadores é composta por homens analfabetos, a comunicação do local das entregas e retiradas é feita inteiramente por meio de códigos compostos por símbolos e cores desenhados nas tampas das dabbas, como indica o modelo abaixo:
Fonte: neilpeterson.com
Fonte: https://semanaacademica.org.br/system/files/artigos/sistema_logistico_dabbawala.pdf
Os entregadores têm autonomia para realizar seu trabalho – os problemas são resolvidos sem a consulta a chefes ou superiores – e há apenas três níveis na hierarquia da cooperativa. Há os entregadores; os coordenadores, que cuidam da distribuição das encomendas nos trens; e o pessoal do apoio administrativo, que fica no escritório. Todos recebem o mesmo salário, de aproximadamente 120 dólares por mês (rendimento considerado razoável no país para pessoas com baixa escolaridade), e são bonificados quando a cooperativa conquista novos clientes. Para quem contrata, o serviço custa cerca de 13 dólares mensais.
“Nós somos nossos próprios mestres, não temos chefes, é por isso que somos todos relaxados, não há pressão, ninguém nos diz o que fazer e como fazer, trabalhamos de maneira independente. Seguimos a filosofia de que ‘levar comida a alguém é o mesmo que servir a Deus’, por isso nunca falhamos ou nos atrasamos, não posso entregar a comida do vegetariano jainista à mesa do carnívoro rajput hindu”, explica um trabalhador em um dos vídeos de divulgação do site da Fundação Mumbai Dabbawala se referindo a diferentes vertentes religiosas e seus hábitos alimentares.
Por falar na Fundação Mumbai Dabbawala, saiba que eles são extremamente organizados, tanto que a universidade de Harvard os estuda, o príncipe Charles da Inglaterra já foi conhecer de perto o negócio e passou um dabbawala day por lá, e a revista Forbes os reconhece como padrão six sigma de qualidade. A cooperativa faz questão de disseminar pelo mundo seu renomado, certificado, estudado e reconhecido modelo de gestão logística. Por meio de workshops, seminários, aulas, Ted Talks, e proporcionando experiências como acompanhar um Dabbawalla durante um dia de trabalho. O que eles ensinam?
“Existem lições de gerenciamento inscritas em cada etapa dentro do nosso sistema de entrega. Trabalhamos em cima de quatro pilares básicos, ou seja, eficiência, gestão do tempo, coordenação e cultura - estão perfeitamente alinhados e se reforçam mutuamente. No mundo corporativo, é incomum que os gerentes busquem esse tipo de sinergia. Enquanto a maioria, se não todos, presta atenção em apenas alguns dos pilares, somente a minoria se preocupa com todos os quatro. Vamos explorar a metodologia de Mumbai Dabbawala em profundidade” – segundo o site oficial da corporativa.
Tendo este case em vista, podemos perceber que tecnologia defasada, más condições dos veículos transportadores ou das estradas que percorrem, condições climáticas e ambientais desfavoráveis, falta de recursos financeiros ou mão de obra pouco escolarizada não servem mais como justificativa para ineficiência em um processo logístico. Seriam esses quatro pilares - eficiência, gestão do tempo, coordenação e cultura – perfeitamente alinhados o segredo da galinha dos ovos de ouro? Quais dessas lições você pode levar e aplicar em sua empresa? Essa conclusão eu deixo para você tirar sozinho.
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